A Mocidade Militar da Praia Vermelha

 

Qual Foi a Relação da Mocidade Militar Com a Queda da Monarquia no Brasil? Por Que a Escola Militar do Rio de Janeiro Era Chamada de “O Tabernáculo da Ciência”? Em Que se Baseava o Sistema Filosófico – o “Positivismo” – de Auguste Comte?

 

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Ao desembarcar no Rio de Janeiro em 1879, o estudante cearense José Bevilácqua ficou deslumbrado com os bondes puxados a burro, com as elegantes vitrines das lojas da Rua do Ouvidor e com os cafés, onde se reuniam políticos e intelectuais da época. Numa carta aos pais, contou ter achado tudo muito bonito e admirável: _ “O Rio de Janeiro é o Brasil, e a Rua do Ouvidor é o Rio de Janeiro! ”.

Com apenas 17 anos, Bevilácqua vinha de uma pequena cidade do interior cearense, onde sua mãe era professora primária e o pai mestre de obras. Naquela época, filhos de famílias pobres só tinham duas alternativas para fazer um curso superior; ser padre ou militar.

Daí primeiro ele foi seminarista em Belém e, ao perceber que não tinha vocação religiosa, sentou praça no Exército – pré-requisito para ingressar na Escola Militar da Praia Vermelha. Essa decisão o lançaria no olho do furacão responsável pela Proclamação da República.

O Rio de Janeiro e a Escola Militar eram o celeiro da “mocidade militar” que prepararia e executaria o golpe contra a Monarquia em 15 de novembro de 1889. Bevilácqua estaria na tropa que nesse dia desfilou pelo centro da capital em comemoração à queda do Império.

A mocidade militar foi o fermento de um bolo ao qual se juntariam mais tarde os demais ingredientes da Proclamação, incluindo oficiais militares veteranos, como os Marechais Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto, os fazendeiros paulistas e toda a galeria de jornalistas, advogados e intelectuais republicanos.

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As relações pessoais desse grupo eram tão estreitas que Bevilácqua viria a ser genro de Benjamin Constant, professor da Escola Militar e mentor intelectual desse grupo de jovens. Também colega de Bevilácqua, o fluminense Euclides da Cunha – futuro jornalista, escritor e autor do clássico “Os Sertões” – casaria com a filha do Major Sólon Ribeiro, igualmente integrante do grupo.

Na Escola Militar estudava-se muito e o currículo incluía álgebra, geometria analítica, cálculo diferencial, física experimental, química orgânica, trigonometria esférica, ótica, astronomia, geodesia, desenho topográfico, tática, estratégia e história militar, direito internacional, noções de economia política e arquitetura civil e militar.

Era ali que os estudantes vindos dos mais diferentes pontos do país, entravam em contato com as ideias que, naquele momento, germinavam revoluções ao redor do mundo. Por isso, a escola era chamada de “O Tabernáculo da Ciência”. Seus alunos se identificavam como “os científicos”, homens contaminados pelo “Século das Luzes”, imbuídos da missão de entender e transformar o mundo.

Nenhum pensador teve tanta influência sobre a “mocidade militar” do RJ quanto o francês Auguste Comte, considerado o “pai” do positivismo – conjunto de ideias que seduziu toda uma geração de intelectuais brasileiros na segunda metade do século XIX. Comte apoiava os ideais da Revolução Francesa, que incluíam o fim da Monarquia, a ampliação dos direitos individuais, a separação entre Estado e religião, mas assustava-se com o caráter sanguinário que a revolução tinha adquirido.

Após a revolução, a Monarquia e a República foram derrubadas e restauradas na França inúmeras vezes, sempre em meio a novos banhos de sangue. O Regime do Terror havia dado lugar às guerras napoleônicas, nas quais os franceses tentaram impor as ideias que a revolução falhara em implantar nas assembleias populares.

Após a derrota de Napoleão em 1815, reis e governantes civis se revezaram no poder por mais de ½ século, até 1870 – ano da consolidação da República na França. Cada fase vinha com novas receitas para velhos problemas e as ideias de Comte – resultado de sua experiência pessoal – procuravam dar ordem ao caos instalado no continente europeu nessa ocasião.

O positivismo de Comte baseava-se em um sistema filosófico (a “Lei dos Três Estados”), onde o ser humano passaria por 3 etapas de evolução. A 1ª seria a fase teológica, onde as pessoas tentariam explicar os mistérios da natureza através da crença na ação dos espíritos e elementos mágicos. Sociedades ainda presas à essa fase aceitariam a ideia de que a autoridade dos Reis e o poder do Estado teriam uma origem divina – decorrentes de uma delegação sobrenatural. Portanto, a Monarquia seria o regime de governo natural de um estágio primitivo na evolução humana, mais próximo da barbárie do que da racionalidade.

A 2ª fase seria a metafísica, onde a imaginação daria lugar à argumentação abstrata. Nesse patamar estariam os filósofos gregos, os quais passaram a usar a razão para explicar os fenômenos naturais. Em decorrência dessa mudança de foco, a organização e o governo das nações passariam a basear-se na soberania popular, não mais em uma suposta origem divina. Este seria um estágio intermediário, no qual os seres humanos ainda não teriam acesso ao instrumento mais fundamental na aquisição do conhecimento – o método científico.

A ciência só passaria a orientar o entendimento humano na fase seguinte, a 3ª na escala de valores de Auguste Comte, a qual ele denominou de “científico” ou “positivo”. Era para esse terceiro estágio que boa parte dos seres humanos se encaminhava no século XIX – pelo menos nas sociedades que ele julgava mais desenvolvidas, como era o caso dos países europeus. Essa noção estaria na base da moderna Sociologia, ciência da qual Comte é considerado fundador. Dela resultou também a expressão “Ordem e Progresso”.

No pensamento do filósofo francês Auguste Comte estava a gênese de outro conceito que moveu as paixões dos “científicos” da Escola Militar da Praia Vermelha: – o da ditadura republicana. A tarefa de reformar a sociedade – segundo sua proposta – deveria ser levada a cabo por uma elite intelectual situada na vanguarda dos 3 estágios evolutivos. Portanto, a República deveria ser implantada de cima para baixo, de forma a prevenir insurreições populares que pudessem ameaçar a boa marcha dos acontecimentos.

Na segunda metade do século XIX o positivismo já estava em decadência na Europa, tanto como religião quanto como sistema filosófico. No Brasil, chegaria ao apogeu nessa época e seria o germe da transformação ocorrida em 1889 – como demonstra o lema “Ordem e Progresso” inserido na bandeira nacional. A primeira agremiação positivista brasileira foi criada no Rio de Janeiro em 1876 com o objetivo de “promover um curso científico” e construir uma biblioteca.

Entre os 7 fundadores estava 2 professores da Escola Militar, o então Major Benjamin Constant e o engenheiro Roberto Trompowsky Leitão de Almeida. Cinco anos mais tarde a agremiação estaria em crise, pois muitos insistiam em transformá-la em Igreja Positivista do Brasil. Benjamin Constant e outros sócios pedira afastamento, discordando dos desdobramentos religiosos das ideias do filósofo francês.

A partir daí a história do Positivismo no Brasil ficou dividida em 2 vertentes; a primeira, religiosa, tornou-se irrelevante. Em 1890 – primeiro ano da República – a “Igreja da Humanidade” contava com apenas 159 adeptos em todo o país ([1]). No entanto, como ideologia política, as ideias de Comte teriam enorme impacto na história republicana.

E alguns chegaram a estabelecer ligações entre elas e a Revolução de 1930, liderada por Getúlio Vargas – ex-adepto do Positivismo. Da mesma forma, haveria no golpe militar de 1964 um eco positivista tardio, tão arraigado no pensamento militar estaria a ideia de um grupo capaz de conduzir ditatorialmente os rumos da instável República brasileira.

Os jovens “científicos” da Escola Militar se declaravam ateus ou agnósticos e, para eles, o desafio da reforma das instituições incluía mudar a própria religião católica – tida como uma das razões do atraso brasileiro. Em 1886, Lauro Sodré fundou em Belém o primeiro clube republicano do Pará, cujo objetivo seria “a eliminação da realeza que, para nós, representa a causa do nosso atraso”.

A propagação dessas ideias em um país católico e conservador gerava desconforto e preocupações e, o melhor exemplo disso, é o episódio envolvendo o cearense José Bevilacqua e sua família. Em 1886, quando ele já era um membro das reuniões e sociedades secretas da “mocidade militar”, sua mãe ficou assustada ao saber que o filho iria morar em uma “república” de estudantes.

No Ceará, a menção da palavra república era considerada perigosa. Em resumo, a “república” que tanto assustava a mãe de Bevilacqua não passava de um alojamento estudantil; mas, era justamente em locais como esse que germinava (em 1889) a semente da derrubada do Império. E não por acaso se chamavam “repúblicas”.

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([1]) COSTA, João Cruz. “O Positivismo na República: Notas Sobre a História do Positivismo no Brasil”. P.48

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