A Organização da Atividade Econômica

 

Por Que as Propostas de Organização Liberal Formuladas no Século XVIII Sofreram Contestação? Como Eram Solucionados os Problemas da Organização Social e da Sobrevivência Econômica nas Organizações Baseadas na Tradição? Como Era a Concepção Mercantilista do Estado Como Agente Central?

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As raízes históricas dos sistemas fundamentados na livre iniciativa se encontram no pensamento liberal do século XVIII. Sob o ponto de vista econômico, o liberalismo se alicerçou na certeza de que a livre atuação da oferta e da procura, a excitação do lucro e os mecanismos do mercado competitivo seriam capazes de garantir o ordenamento automático da atividade econômica. Entretanto, as propostas de organização liberal formuladas no século XVIII sofreram contestação das teorias coletivistas – desenvolvidas no século XIX – que pretendiam a substituição da livre iniciativa e da concorrência, por um sistema controlado pelo Estado.

No caso dessa 2ª alternativa, as funções dos preços do mercado e da livre concorrência seriam desprezadas e, em seu lugar, seriam implantadas centrais de planificação econômica. Hoje, essas duas alternativas afastadas de suas posições extremas, constituem o resultado de um longo ciclo que se iniciou com as formas primitivas baseadas na tradição e na autoridade, passando pelo Mercantilismo e atingindo o período das revoluções ideológicas, inaugurado no século XVIII e amadurecido ao longo do século XIX e as primeiras décadas do século XX.

As Primitivas Formas de Organização Econômica – Tradição e Autoridade

 

Como base da organização social, política e econômica, a tradição dominou os sistemas que garantiam a continuidade do seu esforço produtivo, transmitindo as várias tarefas de geração a geração, segundo o costume e o hábito; ou seja, o filho acompanhava o pai, e o sistema era preservado. Nesses sistemas, os recursos disponíveis não seriam distribuídos por orientação de uma autoridade central. Não seriam alocados segundo as indicações do sistema de preços, mesmo porque as comunidades que recorreram à tradição para sua organização econômica não possuíam um sistema monetário capaz de suportar o funcionamento de um aparelhamento produtivo guiado pelos preços dos recursos mobilizados e dos produtos obtidos.

Conforme Adam Smith, no antigo Egito todo homem era obrigado, por princípio religioso, a seguir a ocupação de seu pai e, certamente, cometeria o mais horrível dos sacrilégios se a trocasse por outra. Porém, é também no Egito que serão encontradas formas primitivas de organização baseadas na autoridade e, atividades como a construção de pirâmides, eram desenvolvidas a partir de ordens de uma eficiente organização central, a qual comandava toda a ação econômica da sociedade.

Nas organizações baseadas na tradição, os problemas da organização social e da sobrevivência econômica eram solucionados pelo caráter hereditário das ocupações e pela transmissão dos principais conhecimentos produtivos acumulados. Já nas organizações com base na autoridade, esses problemas admitiam diferente solução: era um poder central que indicava como deveriam ser utilizados os recursos, quais os objetivos do sistema e de que forma seria a repartição do produto obtido. Os controles centralizados é que comandavam as atividades, então subordinados a uma disciplina autoritária.

Esse quadro não sofreria alterações profundas durante a Idade Média. Aliás, as unidades feudais promoveriam a fusão dos princípios da autoridade e da tradição ao princípio da proteção. O senhor feudal mantinha em seus domínios os dois princípios que vinham orientando o esforço produtivo dos povos. Mas, a eles incorporavam a mística da proteção; ou seja, os servos dos senhores feudais e os arrendatários de seus domínios tributavam-lhe apreciável parcela do resultado de seu trabalho, em troca de certa proteção, embora essa fosse mais ilusória que real.

A Concepção Mercantilista – o Estado Como Agente Central

 

Papel Moeda

Ainda sem confiar no papel regulador do sistema de preços e na capacidade orientadora do mercado, a organização da atividade econômica no período entre o século XVI e a Revolução Liberal do século XVIII seria baseada na forte intervenção econômica do Estado. Protecionismo, restrições, subsídios às atividades industriais, política fiscal de estímulo às exportações, desencorajamento das importações e regulamentos para as atividades de natureza econômica eram alguns dos procedimentos que os Estados mercantilistas adotaram até à emergência do Estado Liberal.

Nesse período mercantilista, nenhum aspecto da vida econômica escapou do olho do planejamento central do Governo. Regulamentações sobre o trabalho, consumo, finanças, agricultura e manufaturas seriam aceitas como funções normais do Governo. O Mercantilismo construiu a economia do Estado e as regulamentações cobriam todos os aspectos da vida econômica, numa tentativa de engrandecimento do poder central. Todavia, a organização mercantilista desembocou na constituição de um sistema social pouco favorável à sua própria manutenção, pois a sua última finalidade era o aumento do poderio do Estado.

Embriagada pela acumulação metalista, a política mercantilista não favoreceu o entendimento de que o progresso de uma nação implica na melhor distribuição da renda, igualdade de oportunidades e extensão dos benefícios obtidos a todos os que são mobilizados para a sua realização. Divorciadas de tal enfoque, as restrições e interferências sobre a atividade econômica iriam gerar um meio de cultura favorável à disseminação de novos ideais, que se concentraram em torno de uma nova filosofia individualista. A esta ficariam ligados os pressupostos liberalistas e a promoção do indivíduo, em seus aspectos econômicos, sociais e políticos, constituíram a preocupação fundamental de uma nova época. A livre iniciativa – com um mínimo de interferência estatal – é que deveria comandar o expediente produtivo da nação.

Paralelamente a esses novos objetivos, a Revolução Industrial iria sobrepor-se à Revolução Comercial dos séculos XVI e XVII. Daí o Estado Mercantilista desapareceria, enquanto a livre iniciativa empresarial encontraria importantes correntes do pensamento econômico para justifica-la. Dessa forma, a interferência do Governo na vida econômica seria substituída pelo livre mecanismo do sistema de preços. O individualismo, o interesse próprio, os mercados livres e a concorrência surgiriam como plano de fundo para a emergência do Estado Liberal.

 

A Descoberta do Papel Orientador dos Preços

 

As doutrinas liberais – que conduziram aos atuais sistemas de livre iniciativa – se desenvolveram no século XVIII e, em 1776, dois importantes acontecimentos marcaram a definitiva eclosão dos sistemas liberais de organização da atividade econômica: a Declaração da Independência dos EUA e a publicação do clássico “A Riqueza das Nações” de Adam Smith, na Inglaterra. Esse 2 acontecimentos revelam relação, pois ambos foram produtos de correntes comuns de pensamento, que há muito vinham circulando de um e de outro lado do Atlântico.

A Riqueza das Nações assinala a maturidade e a emancipação de uma das primeiras entre as nossas atuais ideologias. A Independência dos EUA refletiu o mesmo clima de opinião em seu apelo à rebelião, inaugurando o primeiro de uma série de movimentos revolucionários. À mesma época, a França vivia momentos de crise, pois seu sistema tributário acusava enormes privilégios. A perda de dois elementos de seu império colonial foi o resultado dos problemas políticos da monarquia decadente. O ministro persistia na condenação política mercantilista: as tarifas aduaneiras, os regulamentos impostos às corporações e outros controles vinham dificultado o bom desenvolvimento das atividades econômicas. Ou seja, enquanto a Inglaterra assistia ao impacto liberal dos economistas clássicos e os EUA procuravam uma nova ordem econômica para a organização de uma economia livre, a França, embebida nos ideais revisionistas, promovia sua revolução liberalista.

Foi nessa época que as economias ocidentais elegeram a expressão “laissez-faire” como a máxima central do Liberalismo, que pretendia a total não-interferência do Estado na organização econômica. Pregavam que a atividade deveria ser confiada às forças naturais da oferta e da procura, cabendo ao Estado limitadas funções. Daí Smith propôs que o orçamento do Estado fosse apenas para a manutenção dos serviços públicos, enquanto os fisiocratas advogavam a eliminação dos controles que haviam proporcionado a intervenção da Monarquia francesa nas atividades econômicas.

A instituição do Liberalismo seria propriedade privada dos meios de produção, os produtores seriam guiados pelos seus próprios interesses. A concorrência entre eles agiria a fim de evitar que as pretensões empresariais não atendessem aos interesses da coletividade. O bem-estar coletivo seria conseguido pela capacidade empresarial dos detentores dos meios de produção e não através da interferência estatal no meio econômico.

Correlacionado à propriedade privada dos meios de produção e à livre iniciativa, o lucro seria a segunda instituição liberal. Os empresários seriam atraídos para os setores com melhores perspectivas de lucro e, tai setores, não poderiam ser senão os que se dedicassem à produção de bens desejados pela coletividade. Guiados pelo interesse próprio, os consumidores teriam liberdade de maximizar sua satisfação em função de seus rendimentos e, mais uma vez, a concorrência seria a contrapartida entre os interesses conflitantes dos produtores e consumidores.

Resumindo: o interesse próprio constituiria a força motriz da organização econômica liberal e, tal força, encontraria na competição os elementos necessários ao perfeito funcionamento do sistema. A competição seria a contrapartida do interesse próprio e o Estado não deveria interferir na organização da atividade. Esta seria guiada pelo livre mecanismo do sistema de preços.

 

Planificação Global – uma Crítica às Imperfeições da Concorrência

O Liberalismo alcançou o apogeu no período entre as últimas décadas do século XVIII e a primeira metade do século XIX, quando ganharam impulso as novas correntes socialistas. Entretanto, não se encontrará no século XIX nenhuma revolução socialista que tivesse substituído por outras as velhas instituições do laissez-faire. Conforme Hoover ([1]) até 1917, o Capitalismo poderia ser apresentado não só como o melhor e o mais eficiente sistema econômico jamais surgido, mas também como um sistema universal.

Todavia, o Liberalismo vinha acusando graves vícios e causando decepções desde a segunda metade do século XIX. Conforme Marshall ([2]), “a livre iniciativa, solta como um grande monstro selvagem, pôde fazer sua violenta corrida. O abuso dos novos poderes dos homens de negócios, incultos, levou males por todos os lados; incapacitou as mães para cumprirem seus deveres; sobrecarregou as crianças de cansaço e, em muitos lugares, degradou a própria raça. Enquanto isso, a negligência da lei fez baixar a energia moral e física do inglês, privando o povo das qualidades que o capacitariam para a nova ordem de coisas, ela fomentou o mal e diminuiu o bem causado pelo advento da livre iniciativa”.

É verdade que a livre ação do mercado, o sistema concorrencial de propriedade privada e os estímulos da instituição do lucro promoveram sensível expansão da eficiência produtiva e um certo crescimento do salário das classes trabalhadoras. Todavia, as desigualdades se tornaram flagrantes: o crescimento do rendimento das classes trabalhadoras não poderia ser comparado ao rápido enriquecimento das classes empresariais, as quais detinham poderes incomparavelmente maiores que os da coletividade assalariada. As esperanças do Liberalismo não se realizaram: o sistema constituíra-se, quase que exclusivamente, em um prêmio à capacidade dos empreendedores. O livre jogo das forças de mercado e a não-interferência do Estado não vinham garantindo o perfeito funcionamento da economia e, dessa forma, algumas crises gerais – e sobretudo setoriais – denunciavam imperfeições insustentáveis.

Os Socialistas acreditavam que as instituições do Liberalismo como o lucro, a concorrência através do sistema de preços e a propriedade privada dos meios de produção eram os responsáveis pelas desigualdades da renda e pelas crises setoriais. Eliminar essas instituições constituiria o objetivo específico da Revolução Socialista. A propriedade dos meios de produção deveria pertencer à sociedade e, a organização da atividade, não deveria ser guiada pelo lucro e pela concorrência, mas sim por um único centro de decisões que atuaria no sentido do interesse coletivo.

Assim o sistema liberal seria substituído pela intervenção total do Estado. Os fluxos da produção e da renda seriam regulados por uma central de planificação, que estabeleceria os objetivos da economia, os meios para alcança-los, a remuneração dos recursos e os preços dos bens e serviços. A planificação global, oposta ao laissez-faire, promoveria a justa remuneração dos fatores e eliminaria as desigualdades econômicas. Além disso, evitaria a ocorrência de crises setoriais ou gerais, através da fixação de metas compatíveis com as reais necessidades.

Esse segundo sistema de organização da atividade econômica, embora proposto no século XIX, só seria praticado pela Rússia após a Revolução de 1917. Somente à época da 2ª Guerra é que outras Nações passaram a submeter-se às regras da planificação centralizada: _ Tchecoslováquia, Iugoslávia, Hungria, Alemanha Oriental, Polônia, Bulgária Albânia e China Continental. Os sistemas liberais hoje praticados nos EUA e na maior parte da Europa Ocidental não se subordinam às regras preconizadas no século XVIII por Adam Smith; foram abandonados os extremos da plena liberdade econômica e do absenteísmo do Estado. De igual forma, os extremos do planejamento global impositivo e da eliminação da livre iniciativa já não são mais as características das economias da CEI e do Leste Europeu, que caminham para modelos próximos dos sistemas ocidentais descentralizados. E, mesmo a China Continental, vem flexibilizando o ordenamento de seu sistema econômico.

 

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([1]) HOOVER Calvin B. “A Economia, a Liberdade e o Estado”. Rio de Janeiro, AGIR, 1964

([2]) MARSHALL, Alfred. “Principles of Economics”. London, Macmillan, 1890.

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